Análise: Líder em feminicídios, em Mato Grosso partidos lançam agressores de mulheres candidatos
A reverberação dos discursos de ódio e os ataques machistas ganham no campo dos partidos conservadores uma perigosa naturalização, escreve Julia Munhoz
Por Julia Munhoz*
Mato Grosso é o estado que registrou a maior taxa de feminicídios do país, conforme dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). No contexto de uma cultura machista, o campo conservador da política reforça, na prática, a violência e o preconceito contra as mulheres. Muitos partidos políticos estão lançando em diversos municípios candidatos a prefeito, homens, com histórico de agressões às mulheres. São homens denunciados e até mesmo filmados agredindo esposas, namoradas ou companheiras. Seus nomes são referendados pelas siglas partidárias para disputar prefeituras mato-grossenses, como se o perfil de agressores de mulheres fosse algo irrelevante para a sociedade.
São vários exemplos do desprezo dos partidos em relação à condição de agressores de mulheres dos seus candidatos escolhidos pelos partidos. Na região Norte de Mato Grosso, no recém-criado município de Boa Esperança do Norte, o MDB lançou a candidatura do empresário e produtor rural Calebe Francio. Conforme matéria veiculada no site PNB Online, vídeos mostram ele agredindo a esposa T. S. R.. O caso de violência doméstica aconteceu em setembro de 2023 e desde então a vítima conseguiu na justiça medidas protetivas.
Quase um ano depois, às vésperas das eleições municipais de 2024, Calebe Francio não só teve o nome confirmado pelo MDB para a disputa à prefeitura de Nova Esperança do Norte como conseguiu apoio de siglas como União Brasil, liderada em Mato Grosso pelo governador Mauro Mendes, e PL, liderado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro.
Neste primeiro recorte, já é possível identificar que muito do que é dito em discursos por líderes dessas legendas, na maioria comandadas por homens, não se reflete na prática e muito menos nos estatutos dos partidos. No caso do MDB, por exemplo, essa “igualdade de papel” é evidente. O estatuto do partido estabelece como um dos deveres dos filiados “respeitar os direitos de participação política feminina e agir contra a prática de atos de violência política contra a mulher”.
O MDB prevê ainda que o Código de Ética e Disciplina do partido incluirá́ a violência política contra a mulher dentre as vedações passiveis de sanções éticas e disciplinares. Observamos a forma frágil de proteção as mulheres, quando o estatuto do partido restringe à violência política, ignorando todos os outros tipos de violência contra a mulher explicitados em instrumentos legais.
Um exemplo é o Decreto-Lei 2.848/40 que estabeleceu o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio, promovendo alterações no Código Penal. Ou a própria Lei Maria da Penha que tipifica outras formas de violência praticadas contra mulheres que não se resumem à agressão que resulta em lesão corporal. São elas: física, psicológica, sexual, patrimonial e moral.
A mesma situação de Boa Esperança do Norte se repete em outra região de Mato Grosso. No município de Pontes e Lacerda, região Oeste, o recém-criado PRD lançou o pecuarista Benedito Braga candidato a prefeito. Conforme matéria do site Hiper Notícias, Dito Braga, como é conhecido, foi denunciado em 2019 por violência doméstica contra L.H.R., com quem foi casado durante 33 anos.
Quem também faz parte da coligação que apoia a candidatura a prefeito de Dito Braga é o União Brasil liderado pelo governador do estado e o Republicanos, liderado pelo vice-governador Otaviano Pivetta, que em 2021 foi indiciado pela Polícia Civil de Santa Catarina, por violência doméstica.
No caso do partido União Brasil, no estatuto do partido, no que se refere aos deveres do filiados, não há qualquer menção sequer ao respeito à participação das mulheres ou o combate a qualquer tipo de violência. Diferente do que ocorre no partido Republicanos, que mantém em seu estatuto um capítulo inteiro escrito sobre o combate, prevenção e repressão à violência política contra a mulher.
Para definir a atuação no combate à violência contra mulher, o Republicanos cita normas internacionais e a Lei 14.192/2021, que “veda qualquer tratamento discriminatório em razão de sexo, raça, cor, língua, religião ou de qualquer outra natureza repudiando quaisquer atos de violência política contra a mulher”. Os filiados ao Republicanos ainda assumem, no papel, o compromisso de prevenir, reprimir e erradicar e combater a violência política contra a mulher. Além disso, o estatuto do partido prevê a instituição do Observatório Nacional de Combate a Violência Política contra a Mulher.
Esses casos de violência doméstica e as denúncias e vídeos de agressões contra mulheres, incluindo depoimentos das próprias vítimas, são um ‘não assunto’ dos partidos conservadores, que dominam a política em Mato Grosso. Os compromissos estabelecidos nos estatutos são, é importante reiterar, uma “igualdade de papel”. Entre intenção e gesto, o lançamento destes homens agressores de mulheres é uma evidência da cultura do machismo que permeia estes partidos políticos no estado e os valores que são acionados na defesa dos agressores candidatos.
Os acusados de agressão às mulheres começam a campanha tentando atenuar o perfil violento e preconceituoso. Em suas redes sociais, Calebe Francio classificou a denúncia de agressão como um “acontecimento” e buscou defender a própria honra colocando-se na condição de vítima após o que ele entende como “um ataque a sua vida particular”. Sem citar que se trata de uma denúncia de violência doméstica, ele ainda afirma que “a situação foi superada com a ex-companheira”. O agressor candidato então aciona valores como orgulho, responsabilidade masculina e família. “Eu ando pelas ruas dessa cidade de cabeça erguida. Boa Esperança me conhece, sabe do meu trabalho”.
Ao propormos um olhar mais alargado compreendemos que essa cruel realidade que relega às mulheres vítimas de violência a serem representadas politicamente por seus agressores, pelos homens que batem em mulheres sem qualquer restrição dos partidos políticos, é naturalizada, não é situada como uma questão de interesse público. Como a honestidade e a competência do candidato, o respeito às mulheres deveria ser uma condição exigida pelos partidos para lançar qualquer candidato. Não é assim na prática: os compromissos são só para ler, e não para valer.
Outro ponto que observamos é que para além das candidaturas, em Mato Grosso os partidos políticos não apenas permitem agressores candidatos como os agressores filiados que ocupam as mais variadas esferas de poder político. Em Matupá, município na região Norte do Estado, o empresário do agronegócio, ex-prefeito por quatro mandatos e deputado estadual Valter Miotto também foi denunciado por violência doméstica.
A ex-esposa de Miotto conseguiu na justiça medidas protetivas contra o ex-prefeito. Na época dos fatos denunciados, em 2023, ele ocupava a cadeira de deputado estadual pelo MDB. E antes disso, em 2020 ele foi denunciado por uma servidora da Prefeitura de Matupá por assédio sexual.
Após a repercussão dos vídeos e áudios agredindo a ex-esposa na imprensa local e nacional, Valter Miotto deixou o MDB e conseguiu espaço para filiar-se ao PL. Neste ano, ele até cogitou mais uma candidatura a prefeito de Matupá, mas decidiu apoiar o candidato do MDB.
Em Discurso de Ódio – uma política do performativo, Judith Butler situa o discurso como um ato de fala, um fazer ou uma espécie de conduta de tipo igualmente discursivo e igualmente consequente. Ou seja, não podemos ignorar o discurso machista que é disseminado por líderes políticos com poder de influência no cotidiano. Ou seja, a reverberação dos discursos de ódio e os ataques machistas, que precedem agressões físicas e os feminicídios, ganham no campo dos partidos conservadores uma perigosa naturalização com estas candidaturas de agressores de mulheres.
Homens com histórico de violência recebem de seus partidos um sinal de complacência e, também, de cumplicidade. Não há, de modo geral, qualquer punição efetiva por parte das siglas partidárias. Ao contrário, como vimos aqui em alguns casos, ganham espaço privilegiado de candidaturas aos cargos eletivos em disputa. Homens machistas e estatutos de faz de conta mantêm uma igualdade de papel. Uma sinalização partidária dada à sociedade de que permitem colocar as mulheres na alça de mira dos agressores.
Este artigo é uma análise preliminar de um dos recortes que utilizo no projeto de pesquisa que desenvolve no doutoramento de Pós-graduação em Estudos de Cultura Contemporânea (ECCO) da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). O contexto da discussão que proponho envolve a cultura do machismo que marca também o sistema partidário brasileiro. Um sistema fragmentado que abre um vácuo onde muito do que é escrito nos estatutos não condiz com a prática partidária.
*Julia Munhoz é jornalista e doutoranda do Programa de Pós-graduação em Estudos de Cultura Contemporânea (ECCO) da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT)